Resumo por Bianca Wild
Pretendo aqui apresentar
um breve apanhado da obra História e Memória, de Jacques Le Goff. O referido
livro é resultado da reunião de vários ensaios de Le Goff escritos entre 1977 e
1982, onde o autor busca revigorar ou reconstruir o conceito de história,
tratando de como este conceito foi construído desde Heródoto até a escola de
Annales. Neste livro, Le Goff também trata do importante conceito de memória, e
afirma que o conceito de memória nos
remete, a um fenômeno individual e psicológico, que possibilitaria ao homem a
atualização de impressões ou informações passadas. Vejamos a seguir as
concepções do autor acerca deste conceito tão importante e mais em voga do que
nunca.
Para Jacques Le goff, a
memória, como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em
primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem
pode atualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como
passadas. De acordo com Le Goff, a noção de aprendizagem, importante na fase de
aquisição da memória, desperta o interesse pelos diversos sistemas de educação
da memória que existiram nas diversas sociedades e em diferentes épocas: mnemotécnicas.
Segundo Le Goff, os
fenômenos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos como nos psicológicos,
não são mais que os resultados de sistemas dinâmicos de organização e apenas
existem na medida em que a organização os mantém ou os reconstitui. As
perturbações da memória, que ao lado da amnésia, se podem manifestar também no
nível da linguagem na afasia, devem em numerosos casos esclarecer-nos também a
luz das ciências sociais. Por outro lado, em um nível metafórico, mas
significativo, do mesmo modo a amnésia não é só uma “perturbação” no indivíduo,
mas envolve perturbações mais ou menos graves da presença da personalidade, mas
também a falta ou perda voluntária ou involuntária da memória coletiva nos
povos e nas nações podem determinar perturbações graves da identidade coletiva,
a meu ver, no Brasil, no momento atual, passamos por perturbações resultantes
da amnésia coletiva de grande parte da população.
Para Jacques Le Goff,
as ligações entre as diferentes formas de memória podem apresentar caracteres
não metafóricos, mas reais. Para o autor, a memória coletiva foi posta em jogo
de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhor da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos
grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de
manipulação da memória coletiva. O estudo da memória social é um dos modos
fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos
quais a memória está ora no retraimento, ora em transbordamento. O
autor alerta para os riscos do controle da memória coletiva, principalmente
pelos governos e assegura que documentos e monumentos, materiais da memória
coletiva e da História, não são um conjunto do que existiu no passado, mas sim
uma escolha efetuada pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo
e da humanidade.
Le Goff afirma que, no
estudo histórico da memória histórica, é necessário dar uma importância
especial às diferenças entre sociedades de memória essencialmente oral e
sociedades de memória essencialmente escrita e as fases de transição da
oralidade à escrita. Segundo o autor, pareceu preferível, para valorizar melhor
as relações entre a memória e a história, evocar separadamente a memória nas
sociedades sem escrita antigas ou modernas distinguindo na história da memória,
nas sociedades que tem simultaneamente memória oral e memória escrita, a fase
antiga de predominância da memória oral em que a memória escrita ou figurada
tem funções específicas; a fase medieval de equilíbrio entre as duas memórias,
com transformações importantes das funções de cada uma delas; a fase moderna de
processos decisivos da memória escrita ligada à imprensa e à alfabetização e
por fim, reagrupar os desenvolvimentos do último século.
Le Goff afirma que
documentos e monumentos, materiais da memória coletiva e da História, não são
um conjunto do que existiu no passado, “mas uma escolha efetuada quer pelas
forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer
pelos que se dedicam a ciência do passado e do tempo que passa, os
historiadores”. O autor ressalta que o documento não é inócuo (...) resulta do
esforço das sociedades históricas para impor ao futuro voluntária ou
involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um
documento-verdade.
-
A memória étnica
Para Jacques Le Goff,
esta distinção entre culturas orais e culturas escritas relativamente às
funções confiadas à memória, parece fundada no fato das relações entre estas
culturas se situarem a meio caminho de duas correntes igualmente erradas pelo
seu radicalismo, uma, afirmando que todos os homens têm as mesmas
possibilidades; a outra estabelecendo, implícita ou explicitamente uma
distinção maior entre “eles” e “nós”, a verdade é que a cultura dos homens sem
escrita é diferente, mas não absolutamente diversa.
Segundo o autor, o
primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é
aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico - à existência das etnias
ou das famílias, isto é, dos mitos de origem. A história dos inícios toma-se
assim, diz ele, citando uma expressão de Malinowski, um “cantar mítico” da
tradição, memória coletiva das sociedades “selvagens” interessa-se
particularmente pelos conhecimentos práticos, técnicos, de saber profissional.
Nestas sociedades sem escrita há especialistas da memória, homens-memória: “genealogistas”,
guardiões dos códices reais, historiadores da corte/realeza. Mas, é necessário
sublinhar que, contrariamente ao que em geral se crê, a memória transmitida
pela aprendizagem nas sociedades sem escrita, não é uma memória “palavra a
palavra”. Os homens – memória, na ocorrência narradores, não desempenham o
mesmo papel que os mestre-escola. Não se desenvolve em torno deles uma
aprendizagem mecânica automática.
De acordo com Le Goff,
enquanto que a reprodução mnemônica palavra a palavra estaria ligada à escrita,
as sociedades sem escrita, excetuando certas práticas de memorização das quais
a principal é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades
criativas. O autor questiona a transmissão de conhecimentos considerados como
secretos, vontade de manter em boa forma uma memória mais criadora que
repetitiva; e pergunta, não estarão aqui duas das principais razões da
vitalidade da memória coletiva nas sociedades sem escrita?
-
O desenvolvimento da memória: da oralidade à escrita da pré-história à
antiguidade
De acordo com Jacques
Le Goff, nas sociedades sem escrita a memória coletiva parece ordena-se em
torno de três grandes interesses: primeiro, a identidade coletiva do grupo que
se funda em certos mitos, mas precisamente nos mitos de origem, segundo, o
prestígio das famílias dominantes que se exprime pelas genealogias, e o
terceiro, o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente
ligadas a magia religiosa. O aparecimento da escrita está ligado a uma profunda
transformação da memória. Para o autor, o aparecimento da escrita está ligado a
uma profunda transformação da memória coletiva.
Para Le Goff, a escrita
permite a memória coletiva um duplo progresso, desenvolvimento de duas formas
de memória, a primeira é a comemoração, a celebração através de um movimento
comemorativo, de um acontecimento memorável. A memória assume então a forma de
inscrição e suscitou na época moderna uma ciência auxiliar de história, a
epigrafia. Le Goff cita o exemplo do oriente antigo, o fato de que as
inscrições comemorativas deram lugar a multiplicação de movimentos como as
estelas e os obeliscos. Na Mesopotâmia predominaram as estelas onde os reis
quiseram imortalizar seus feitos através de representações figuradas
acompanhadas de uma inscrição.
Segundo o autor, no
Egito antigo, as Estelas desempenharam multiplicas funções de perpetuação de
uma memória: estelas funerárias (...) narrando a vida de um morto, estelas
reais comemorando vitórias (...) estelas jurídicas como as de Karnak e
Hamurabi. As inscrições acumulavam-se e obrigavam o mundo greco-romano a um
esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da lembrança. A outra
forma de memória ligada à escrita é o documento escrito num suporte
especialmente destinado à escrita. Le Goff ressalta que é importante notar que
todo documento tem em si um caráter de monumento e não existe memória coletiva
bruta. Neste tipo de documento, a escrita tem duas funções principais: “uma é o
armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do
espaço e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro; a
outra, ao assegurar a passagem da esfera auditiva visual, permite reexaminar,
reordenar, retificar frases e até palavras isoladas (Goody, apud Le Goff)
O autor destaca que as
grandes civilizações, na Mesopotâmia, no Egito, na China ou na América
pré-colombiana, civilizaram em primeiro lugar a memória escrita, no calendário
e nas distâncias, a “Soma dos fatos que devem ultrapassar gerações
imediatamente seguintes, limita-se à religião, à história e à geografia. O
Triplo problema do tempo, do espaço e do homem constituiu a matéria memorável.
Memória urbana, memória real também, não só a cidade capital se torna o eixo do
mundo celeste e da superfície humanizada. Mas, o rei em pessoa desdobra um
programa de memoração, de que ele constitui o centro, sobre toda a extensão na
qual tem autoridade. Memória real, pois os reis fazem compor e, por vezes,
gravar na pedra anais (ou pelo menos estratos deles) onde, sobretudo narrados
os seus feitos, que nos levam à fronteira onde a memória se torna “história”.
Memória funerária,
enfim, como o testemunham, entre outras, as estelas gregas e os sarcófagos
romanos; memória que desempenhou um papel central na evolução do retrato. Com a
passagem da oralidade à escrita, a memória coletiva e mais particularmente a
“memória artificial” é profundamente transformada.
Jacques Le Goff afirma
que se acrescentarmos que este modelo deve ser precisado de acordo com o tipo
de sociedade e o momento histórico em que se faz a passagem de um tipo de
memória para outro, não pode aplicar sem especificações à passagem oral para o
escrito nas sociedades antigas às sociedades “selvagens” modernas ou
contemporâneas ou as sociedades mulçumanas. Deve-se, segundo o autor, com
efeito, perguntar a que está por seu turno, ligada esta transformação da
atividade intelectual revelada pela “memória artificial” escrita. Pensou-se na
necessidade de memorização dos valores numéricos (...) pensou-se numa ligação
como desenvolvimento do comércio, é necessário ir mais longe e relacionar esta
expansão das listas com a instalação do poder monárquico. A memorização pelo
inventário. Pela lista hierárquica não é unicamente uma atividade nova de
organização do saber, mas um aspecto da organização de um poder novo. Le Goff
ressalta que é também no período da realeza que é preciso fazer remontar na
Grécia antiga, estas listas das quais se encontra um eco nos poemas homéricos.
Segundo o autor, com os
gregos percebe-se de forma clara a evolução para uma história da memória
coletiva. Le Goff cita Pierre Vernant, lembrando que este autor, enfatiza: “a
memória distinguindo-se do hábito, representa uma difícil invenção, a conquista
progressiva pelo homem do seu passado individual, como a história para o grupo
social a conquista do seu passado coletivo”. Le Goff afirma que a passagem da
memória oral à memória escrita é certamente difícil de compreender. Para ele, a
coisa mais notável, sem dúvida é a divinização da memória e a elaboração de uma
vasta mitologia da reminiscência na Grécia arcaica como diz (...) Vernant que
generaliza a sua observação nas diversas épocas e nas diversas culturas há
solidariedade entre as técnicas de rememoração praticadas, a organização
interna da função, o seu lugar no sistema do Eu é a imagem que os homens fazem
da memória. Os gregos, segundo o autor da época arcaica, fizeram da memória uma
deusa, mnemosine. Vernant observa, cita Le Goff, com profundidade “a
transposição de mnemosine e do plano da cosmologia para o da escatologia
modifica todo o equilíbrio dos mitos da memória”.
Para Le Goff, esta
colocação da memória fora do tempo separa radicalmente a memória da história,
“o esforço de rememoração, predicado e exaltado no mito, não manifesta o
vestígio de um interesse pelo passado, nem uma tentativa de exploração do tempo
humano”. Segundo a sua orientação, a memória pode conduzir à história ou
distanciar-se dela. Conforme o autor, a filosofia grega, nos seus maiores
pensadores, não reconciliou a memória e a história. Se em Platão e em
Aristóteles, a memória é um componente da alma, não se manifesta, contudo ao
nível da sua parte intelectual, mas unicamente da sua parte sensível. A memória
platônica perdeu o seu aspecto mítico, mas não procurou fazer do passado um
conhecimento, quer subtrair-se à experiência temporal. Para Aristóteles, que
distingue a memória propriamente dita, a mneme, mera faculdade de conservar os
passado e a reminiscência, a mnesi , a faculdade de evocar voluntariamente esse
passado – a memória , dessacralizada, laicizada, está agora incluída no tempo,
mas num tempo que permanece, também para Aristóteles, rebelde à
inteligibilidade.
Conforme Le Goff, essa
laicização da memória combinada com a invenção da escrita permite à Grécia
criar novas técnicas de memória: a memnotécnica. De acordo com Le Goff, é
necessário, finalmente não esquecer que ao lado da emergência da memória no
seio da retórica, quer dizer, de uma arte de palavra ligada à escrita, a
memória coletiva prossegue o seu desenvolvimento através da evolução social e
política do mundo antigo.
A
memória medieval no Ocidente
Para Le Goff, enquanto
que a memória social “popular”, ou antes, “folclórica” nos escapa quase
inteiramente, a memória coletiva formada por diferentes estratos sociais sofre
na idade média profundas transformações. O essencial vem da difusão do
cristianismo como religião e como ideologia dominante e do quase monopólio que
a igreja conquista no domínio intelectual. De acordo com o autor, a
cristianização da memória e da mnemotécnica, repartição da memória coletiva
entre uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de
fraca penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos,
principalmente dos santos, papel da memória (artes memorize), são os traços
mais característicos das metamorfoses da memória na idade média.
Le Goff conclui que, se
a memória antiga foi fortemente penetrada pela religião, o judaico-cristianismo
acrescenta algo de diverso à relação entre memória e religião, entre homem e
Deus. Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas
histórica e teologicamente na história, como “religiões da recordação.”. E
isto, em diferentes aspectos: porque atos divinos de salvação situados no
passado formam o conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro
sagrado, por um lado, a tradição histórica, por outro, insistem em alguns
aspectos essenciais na necessidade da lembrança como tarefa religiosa
fundamental. De acordo com o autor, assim como os gregos, a memória pode
resultar em escatologia, negar a experiência temporal e a história. Será uma
das vias da memória cristã.
Conforme Le Goff, mais
historicamente, o ensino cristão, apresenta-se como a memória de Jesus
transmitida pela cadeia dos apóstolos e dos seus sucessores. Santo Agostinho
deixou em herança ao cristianismo medieval um aprofundamento e uma adaptação
cristã da teoria antiga sobre a memória. Destaca o autor, que, se a memória
cristã se manifesta essencialmente na comemoração de Jesus, anualmente na liturgia
que o comemora do advento ao pentecostes, através dos momentos essenciais do
natal, da quaresma, da páscoa e da Ascenção, cotidianamente na celebração
eucarística a um nível mais “popular”, cristalizou-se nos santos e nos mortos.
Os mártires eram testemunhos depois da sua morte, cristalizava-se em torno da
sua recordação, a memória dos cristãos. Os seus túmulos constituíram o centro
de igrejas e o seu lugar recebeu, para além dos nomes de Confessio ou de
Martyrium, o significativo, da memória.
Por vezes, afirma Le
Goff, até a memória não comportava nem túmulo nem relíquia como na igreja dos Santos
apóstolos em Constantinopla. Para, além disso, os santos eram comemorados no
dia da sua festa litúrgica (e os maiores podiam ter várias como São Pedro). A
Comemoração dos santos tinha em geral lugar no dia conhecido ou suposto do seu
martírio ou da sua morte. A associação entre morte e memória adquire, com
efeito, e rapidamente, uma enorme difusão no cristianismo, que a desenvolveu na
base do culto pagão dos antepassados e dos mortos. Desenvolveu-se muito cedo na
igreja o costume das orações pelos mortos. O nascimento, no fim do século XIII
de um terceiro lugar do além, entre o inferno e o paraíso, o purgatório, de
onde se podia, através de missas, de orações, de esmolas, fazer sair mais ou
menos rapidamente, os mortos pelos quais as pessoas se interessavam,
intensificou o esforço dos vivos em favor da memória dos mortos. Em
contrapartida, na linguagem corrente das fórmulas estereotipadas, a memória
entra na definição dos mortos lamentados, que são “de boa”, “de bela” memória.
Le Goff afirma que com
o santo, a devoção cristalizava-se em torno do milagre, os ex votos que
prometiam ou dispensavam reconhecimento em vista de um milagre ou depois da sua
realização, conhecidos do mundo antigo, tiveram uma grande voga na idade média
e conservavam a memória dos milagres. Todavia, a memória tinha um papel
considerável no mundo social, cultural e no mundo escolástico e, bem entendido,
nas formas elementares da historiografia. A idade média venerava os velhos,
sobretudo porque via neles homens-memória, prestigiosos e úteis. Todavia,
nestes tempos, o escrito desenvolveu-se a par do oral, e, pelo menos no grupo
dos clérigos e literatos, há um equilíbrio entre memória oral e memória
escrita, intensificando-se o recurso ao escrito como suporte da memória.
De acordo com Le Goff,
a memória urbana, para as instituições nascentes e ameaçadas torna-se
verdadeira identidade coletiva, comunitária. Durante muito tempo, no domínio
literário, a oralidade continua ao lado da escrita e a memória é um dos
elementos constitutivos da literatura medieval. No sistema escolástico das
universidades, depois do final do século XII, o recurso à memória continua
frequentemente a fundar-se mais na oralidade que na escrita. Apesar do aumento
do número de manuscritos escolásticos, a memorização dos cursos magistrais e
dos exercícios orais continua a ser o núcleo do trabalho dos estudantes. No
entanto, como afirma Le Goff, as teorias da memória desenvolvem-se na retórica
e na teologia.
Os
progressos da memória escrita figurada da renascença aos nossos dias
De acordo com Le Goff,
a imprensa revoluciona, embora lentamente, a memória ocidental. A China
limitou-se à xilografia – a imprensa não pode mais agir de forma massiva na
China – Mas seu efeito foi importante. É durante esse período que separa o fim
da idade média e os inícios da imprensa e o começo do século XVIII que Yates
situou a longa agonia da arte da memória. Ao século XVI, parece que a arte da
memória começa a se afastar dos grandes centros nevrálgicos da tradição
europeia para se tornar marginal. Le Goff afirma que a teoria clássica formada
na antiguidade greco-romana é modificada pela escolástica, que tivera um lugar
central na vida escolar, literária e artística da idade média desapareceu quase
completamente no movimento humanista.
Sobre esse período, que
Le Goff afirma ser da “memória em expansão”, como designou Leroi – Gourhan,
verifiquemos o testemunho do vocabulário considerando na língua francesa os
dois campos semânticos saídos da mneme e da memória. A idade média criou a
palavra central mémoire (XI) – XII surge a palavra memorial – 1320 mémoire no
masculino (dossiê administrativo). A memória torna-se burocrática, ao serviço
do centralismo monárquico que então surge – XV – aparecimento da mémorable –
memória tradicionalista – XVI 1552 – mémoires escritos por um personagem é o
século em que a história nasce e o indivíduo se afirma.
Para Jacques Le Goff, a
memória jornalística e diplomática, é a entrada em cena da opinião pública
nacional e internacional, que constrói também a sua memória. Na primeira metade
do século XIX presencia-se um conjunto massivo de criações verbais – 1853 (Aide
– memória) mostra que a vida cotidiana foi tragada pela necessidade de memória.
O século XVIII joga um papel decisivo neste alargamento da memória coletiva: os
dicionários atingem os seus limites nas enciclopédias de toda espécie que são
publicadas – o primeiro grande salão da literatura técnica situa-se na segunda
metade do século XVIII. A grande enciclopédia de 1751 constitui uma série de
pequenos manuais reunidos no dicionário – a enciclopédia é uma memória
alfabética parcelar, na qual cada engrenagem isolada contém uma parte animada
da memória total.
Le Goff afirma que, enquanto
os vivos podem dispor de uma memória técnica, científica e intelectual cada vez
mais rica, a memória parece afastar-se dos mortos. A comemoração dos mortos
entra em declínio, os túmulos incluindo os dos reis, tornam-se muito simples,
as sepulturas são abandonadas à natureza e os cemitérios desertos e mal
cuidados. Imediatamente a seguir à revolução francesa assiste-se a um retorno
da memória dos mortos na França, como em outros países da Europa. A grande
época dos cemitérios começa com novos tipos de monumentos, inscrições
funerárias e rito da visita ao cemitério, o túmulo, separado da igreja voltou a
ser centro de lembrança, o romantismo acentua a atração do cemitério ligado à
memória.
Conforme Le Goff, o
século XIX vê, não mais tanto na ordem do saber como o século XVIII, mas na
ordem dos sentimentos e também, diga-se em abono da verdade, da educação, uma
explosão do espírito comemorativo. Contudo, a laicização das festas e do
calendário facilita em muitos países a multiplicação das comemorações. De
acordo com o autor, se os revolucionários querem festas comemorando a revolução
a maré da comemoração é, sobretudo um apanágio dos conservadores e ainda mais
dos nacionalistas, para quem a memória é um objetivo e um instrumento de
governo. A comemoração apropria-se de novos instrumentos de suporte, moedas,
medalhas, selos de correio multiplicam-se a partir de meados do século XIX, aproximadamente,
uma nova vaga de estatutária, uma nova civilização da isenção submerge as
nações europeias – Grande domínio em que a política, a sensibilidade e o
folclore se misturam e que espera os seus historiadores. Ao mesmo tempo, o
movimento científico, destinado a fornecer à memória coletiva das nações, os
monumentos de lembrança, acelera-se.
De acordo com o autor,
entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva,
encontra-se o aparecimento no século XIX e no início do século XX , de dois
fenômenos, a construção de monumentos aos mortos após a primeira guerra (túmulo
ao soldado desconhecido) procurando ultrapassar os limites da memória,
associado ao anonimato proclamando sobre um cadáver sem nome, a coesão da nação
em torno da memória comum. O segundo é a fotografia que revoluciona a memória:
multiplica-se e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca
antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução
cronológica.
Os
desenvolvimentos contemporâneos da memória
Segundo Le Goff, a
memória em fichas não faz mais que prolongar, tal como a imprensa fora a
conclusão culminante da acumulação da memória desde a antiguidade. Le Goff cita
Leroi – Gourhan mais uma vez, no que tange a memória coletiva, quando este
autor diz que a memória coletiva tomou, no século XIX, um volume tal que se
tornou impossível pedir à memória individual que recebesse o conteúdo das
bibliotecas. O século XVIII e uma parte importante do século XIX viveram ainda
sobre cadernos de notas e catálogos de obras, entrou-se, em seguida, na
documentação por fichas que realmente apenas se organiza no início do século
XX. Na sua forma mais rudimentar corresponde já na constituição de um
verdadeiro córtex cerebral exteriorizado já que um simples ficheiro
bibliográfico se presta, nas mãos do utilizador, a arranjos múltiplos (...) a
imagem do córtex é até certo ponto errada, pois se um ficheiro é uma memória em
sentido estrito, é, contudo uma memória sem meios próprios de rememoração e a
sua animação requer a introdução no campo operatório, visual e manual, do
investigador.
Mas, conforme Le Goff,
os desenvolvimentos da memória no século XX, sobretudo depois de 1950,
constituem uma verdadeira revolução da memória e a memória eletrônica não é
senão um elemento, sem dúvida o mais espetacular. O aparecimento no decurso da
segunda mundial das grandes máquinas de calcular, que deve ser introduzido na
enorme aceleração da história, e mais particularmente da história técnica e
científica a partir de 1860, pode ser recolocado numa longa história da memória
automática.
Le Goff nos fala sobre
a função da memória em um computador: a) Meios de entrada para os dados e para
o programa - b) elementos dados de
memória constituídos por dispositivos magnéticos que conservam as informações
introduzidas na máquina e os resultados parciais obtidos no decurso do trabalho
- c) meios de cálculo muito rápido d)
meios de controle e) meios de saída para os resultados
Em definitivo a memória
é uma das três operações fundamentais realizadas por um computador que pode ser
decomposta em “escrita”, “memória”, “leitura”; esta memória pode em certos
casos ser “ilimitada”. A esta primeira distinção na duração entre memória humana
e memória eletrônica, é necessário acrescentar que a memória humana é
particularmente instável e maleável, enquanto que a memória das máquinas se
impõe pela sua grande estabilidade, algo semelhante ao tipo de memória que
representa o livro, mas combinada, no entanto com uma facilidade de evocação
até então desconhecida. Para além dos
serviços prestados nos diferentes domínios técnicos e administrativos onde a
informática encontra as suas primeiras e principais informações, é necessário
aos nossos fins observar duas consequências importantes do aparecimento da
memória eletrônica. A primeira é a utilização dos calculadores no domínio das
ciências sociais e, particularmente, daquela em que a memória constitui ao
mesmo tempo, o material e o objeto: a história viveu uma verdadeira revolução
documental – aliás, o computador também aqui não é mais que um elemento e a
memória arquivista foi revolucionada pelo aparecimento de um novo tipo de
memória: o banco de dados.
A segunda consequência
é o efeito “metafórico” da extensão do conceito de memória e da importância da
influência por analogia da memória eletrônica sobre os tipos de memória. Para
voltar à memória social, as convulsões que se vão conhecer no século XX, foram
ao que tudo indica preparadas pela expansão da memória no campo da filosofia e
da literatura. A memória coletiva sofreu grandes transformações com a
constituição das ciências sociais e desempenha um papel importante na
interdisciplinaridade que tende a instalar-se entre elas. Pesquisa, salvamento,
exaltação da memória coletiva não mais nos acontecimentos, mas no tempo longo, a
busca dessa memória que temos nos textos, nas palavras, nas imagens, nos
gestos, nos rituais e nas festas é uma conversão do olhar histórico, conversão
partilhada pelo grande publico, obcecado pelo medo de uma perda de memória, de
uma amnésia coletiva, que se exprime desajeitadamente, explorada sem vergonha
pelos mercadores de memória desde que a memória se tornou um dos objetos da
sociedade de consumo que se vendem bem.
Neste momento Le Goff cita Pierre Nora, que
nota que a memória coletiva, definida como o que fica do passado no vivido dos
grupos, ou o que os grupos fazem do passado, pode à primeira vista opor-se
quase termo a termo à memória histórica como se opunha dantes memória afetiva e
memória intelectual. Até nossos dias, historia e memória confundiram-se e a
história parece ter-se desenvolvido sobre o modelo da rememoração, da anamnese
e da memorização. Historiadores davam a
fórmula das “grandes mitologias coletivas”, ia-se da história à memória
coletiva. Mas toda a evolução do mundo contemporâneo, sob pressão da história
imediata, em grande parte fabricada ao acaso, caminha na direção de um mundo
acrescido de memórias coletivas e a história estaria muito mais que antes ou
recentemente, sob a pressão destas memórias coletivas.
A história dita “nova”,
que se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva,
pode ser interpretada como “uma revolução da memória” fazendo-a cumprir uma
“rotação” em torno de alguns eixos fundamentais: “uma problemática abertamente
contemporânea (...) e uma iniciativa decididamente retrospectiva “a renúncia a
uma temporalidade linear” em proveito dos tempos vividos múltiplos “nos níveis
em que o individual se enraíza no social e no coletivo”.
História que fermenta a
partir do estudo dos lugares da memória coletiva. (lugares topográficos –
monumentais ´- simbólicos – funcionais –) estes memoriais tem a sua história, aqueles
onde se deve procurar não a sua elaboração, não a produção, mas os criadores e
os denominadores da memória coletiva. “estados, meios sociais e políticos,
comunidades de experiências históricas ou de gerações, levadas a construir os seus arquivos em função dos
usos diferentes que fazem da memória.
Certamente que esta
nova memória coletiva constitui parte do seu saber com os instrumentos
tradicionais, mas diferentemente concebidos. No domino da história, sob a
influencia das novas concepções de tempo histórico, desenvolve-se uma nova
forma de historiografia – a história da história – que, de fato, é na maioria
das vezes o Estudo da manipulação pela memória coletiva de um fenômeno
histórico que só história tradicional tinha estudado até então.
Conclusão
A evolução das
sociedades na segunda metade do século XX clarifica a importância do papel que
a memória coletiva desempenha exorbitando a história como ciência e, como culto
publico, ao mesmo tempo o montante enquanto reservatório (móvel) da história,
rico em arquivos e em documentos/monumentos e o aval, eco sonoro (e vivo) do
trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das
sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das
classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela
vida, pela sobrevivência e pela promoção.
O autor cita novamente Leroi – Gourhan,
e afirma que suas palavras são mais do que nunca verdadeiras quando ele afirma
que a partir do homo sapiens, a constituição de uma utensilagem da memória
social, domina todos os problemas da evolução humana e ainda : a tradição é
biologicamente tão indispensável à espécie humana como condicionamento genético
o é às sociedades de insetos :a sobrevivência étnica funda-se na rotina, o
diálogo que se estabelece suscita o equilíbrio entre rotina e progresso,
simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência do grupo, o
progresso, a intervenção das inovações individuais para uma sobrevivência
melhorada. Sendo assim, para ele, a memória é um elemento essencial do que se
costuma chamar identidade individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia.
Mas a memória coletiva
é não somente uma conquista é também um instrumento e um objetivo de poder. São
as sociedades cuja memória social é, sobretudo oral ou que estão em vias de
constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta
luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.
Nas sociedades
desenvolvidas, os novos arquivos (orais, do audiovisual) não escaparam à
vigilância dos governantes, mesmo se podem controlar esta memória tão
estreitamente como os novos utensílios de produção desta (melhoria)
nomeadamente a radio e a televisão. Cabe, com efeito aos profissionais
científicos da memória, antropólogos, historiadores, jornalistas, sociólogos,
fazer da luta pela democratização da memória social, um dos imperativos
prioritários da sua objetividade cientifica. A memória, onde cresce história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o
futuro, devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens.
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